domingo, 14 de outubro de 2012

PRIMEIRO DIA SEM VOCÊ (TATI BERNARDI)

Acordo feliz, nada como acordar triste para não carregar a espera da decepção. Tomo um banho demorado escutando Cake no último volume. Claro que não é para te provocar, você não está lá para ouvir a banda que você tanto odeia apenas porque você tem ciúmes de tudo o que eu gosto, mas é para impor ao mundo que eu voltei, estou única e exclusiva novamente. Eu e o meu mundo. Eu e minha solidão sem preconceitos e sem lições de moral, minha melhor amiga, a solidão, nunca vai me achar estranha justamente porque é filha predileta da minha estranheza.
Tomo café com ela que, assim como eu, não come muito. A solidão precisa manter a forma para me acompanhar eternamente, e eu preciso não vomitar pelo inchaço que ela me causa.
Coloco uma roupa estranha, minha pulseira de dentes que você odeia, minha bota que não me deixa nada feminina e pinto os olhos, adoro não precisar parecer uma moça com dono.
No carro escuto Nação Zumbi no último volume, você não conhece, nunca se interessou, como pode? Um movimento tão charmoso ou, no mínimo, uma música boa pra dançar. Lembro que você escuta o mesmo cd do Bob Marley há vinte anos e só troca quando algum amigo seu te dá alguma dica, as minhas dicas são sempre chatas, meu mundo te encheu, como você disse. Dou graças a Deus de estar tão bem acompanhada dentro do meu universo. Eu e Nação Zumbi, eu e Billie Hollyday, eu e Cake, eu e Frank Sinatra, eu e o silêncio do meu carro, sem ninguém pra me dizer que eu freio muito depois do que deveria.

Se eu quiser, hoje, alugo um daqueles filmes europeus p&b e assisto embaixo da minha coberta com um pijama bem feio e meu cabelo em seu pior estado. Quem sabe eu não tiro umas melecas do nariz, beijo minha cachorra na boca e solto pum. Eu e meus filmes prediletos, eu e minha filha peluda, eu e as extensões do meu corpo. Faço aula de yoga ou musculação? Encontro o meu novo amigo interessante para um café ou bato papo com a minha nova amiga sobre essa nossa mania de não saber ser feliz, mas impor ao mundo o tempo todo a cartilha da felicidade?
O mundo é enorme sem você, sem o seu amigo que solta fogos de artifício com o cofrinho aparecendo mas me acha uma babaca, sem o seu amigo que nunca nem olhou na minha cara direito mas bate em mulheres, e sem a sua amiga que cheira enquanto o pinto do marido não levanta e a bebê chora. O mundo é enorme sem toda a culpa que eu carrego por não ser a menininha leve e sem preconceitos que curte ver o desenho da Lua no mar e não se abala com tanto amor e nem com o medo e o cansaço que viver causa.

Eu sei que sou pesada, triste, dramática, neurótica, louca, insatisfeita, mimada, carente. Mas você se esqueceu da minha maior qualidade: eu sou só.

Eu era só aos cinco anos quando eu não entendia porra nenhuma do que estava acontecendo e corria para rezar no banho. A fumaça de cigarro tomando toda a casa enquanto meus pais decidiam absolutamente nada em longas discussões que sempre terminavam com a minha mãe jogada em algum canto tremendo e vomitando, e eu com a certeza de que ela morreria cedo. Hoje em dia ela sinaliza o tempo todo que pode morrer por falta de carinho, e eu não consigo dar a mínima.
 
Eu era só quando descobri que não controlo a vida, primeiro a minha mãe namorando justo no horário do Corujão do sábado, o horário em que eu podia ficar acordada até mais tarde namorando ela num mundo escuro e longe de tudo, depois as uvas lavadas em vinagre me esperando para sempre e meu avô morto no quarto ao lado, as meninas da escola ganhando corpo e charme antes de mim, o meu jeito estranho de ter medo de perder o controle e de multidão.

Eu era só pesando doze quilos a menos, quando o mundo inteiro queria que eu comesse pra não morrer, e eu querendo viver tanto que tinha medo de não conseguir, como tudo que sempre quero muito, e acabo fodendo logo pra não ter que viver com a ansiedade do desejo maior do que eu. Eu quase morri de tanto que queria viver. E eu tô quase acabando com o seu amor por mim, de tanto que eu quero que você me ame. Percebe? Louca. Louca e só, porque ninguém vai agüentar isso.

Eu sempre estou só quando sou tomada por um susto longo e paralisador que dá vontade de me concentrar apenas em mim, e não ver nada e nem ninguém, por isso quis chorar só e escondida atrás da porta, como um rato que todo mundo tem nojo, que causa doenças, que tem um longo rabo deixando tudo entreaberto para trás, mas que no fundo só quer um pouco de queijo, como qualquer criança bonitinha. Carregar nossa alma, com tudo o que ela tem de bom, de mal e de incompreensível, é uma tarefa solitária.

Eu sempre fui só querendo ter uma família grande, café da manhã, Natal, cachorro, e eu continuo só quando te vejo como minha família, mas você me deixa sozinha com duas ou três opções de suco para uma ou duas opções de pão. O mundo é cheio de opções sem você, mas todas elas me cheiram azedas e murchas demais.
Eu continuo só quando quero escrever uma vida com você, mas você detesta meus caminhos anotados e minhas regras. E eu detesto seu sono e sua ausência. Eu detesto seu riso alto e forçado pisoteando o meu mundo de sombras, eu detesto você saindo pela porta e as paredes se fechando, se fechando, e eu sem poder berrar para, pelo amor de Deus, você me resgatar, e me colocar no colo, e me dizer que você me entende e sofre também.

Eu sou só porque enquanto eu pensava tudo isso, você impunha aos quatro ventos, querendo parecer muito forte e macho para seu grupinho muito forte e macho, que você poderia simplesmente abaixar meu som ou mudar de canal, como um programa chato qualquer que passa na sua tv.

Eu hoje fui ao banheiro duzentas vezes para ficar longe do meu celular e do meu e-mail, ficar longe de todas as possibilidades da sua existência. Me olhei no espelho bem profundamente para enxergar minhas raízes e ganhar força, chorei algumas vezes, fiquei sentada no chão do banheiro, para ver se meu corpo esquentava um pouco ou porque estava mesmo me sentindo um lixo. O ar-condicionado hoje está insuportável, mas eu não acho que mude alguma coisa desligá-lo.

Estar sozinha não muda nada, conheço bem esse estado e, de verdade, sei lidar até melhor com ele. O que me entristece, é ter visto em você o fim de uma história contada sempre com a mesma intensidade individual.
Eu tinha visto na sua solidão uma excelente amiga para a minha solidão. Achei que elas pudessem sofrer juntas, enquanto a gente se divertia.
(enviado pela colaboradora Paloma Aimée Ferreira)